Descrição
No primeiro volume da Gratuita publicamos um pequeno arquivo reunido a partir da carta, tomada como objeto, desafio e questão. Lembrando a expressão de Nietzsche, intitular o volume de “Cartas para todos e para ninguém” é apostar que, embora nomeie-se aquele a quem ela se dirige, cada uma das cartas pode ser (pelo desvio dos arquivos, das memórias, do tempo) destinada a qualquer um, aos seus leitores. Neste número da Revista, publicamos cartas inéditas ou traduzidas pela primeira vez para o português e poemas escritos em resposta ao convite da revista.
Na apresentação da revista, escrita por Maria Carolina Fenati, lemos:
“Aquele que escreve cartas assina e ausenta-se, num desaparecimento ativo que é também o desejo da partilha de um segredo, daquilo que lhe é mais próprio – o que há é um papel selado que, pelo enigma, lança-se às leituras e convida à resposta. Isso não significa necessariamente uma ode à intimidade, nem a obrigação da confissão, mas a afirmação da escrita como o inapropriável. Nas cartas, poderíamos imaginar que a caligrafia e a data são como os pontos incandescentes do irrepetível, marcas que restam e fazem com que a distância não seja apagada, mesmo quando as temos nas mãos (aquelas que escrevemos ou que nos são enviadas).
As cartas são textos feitos para partir, e a decisão de endereçar-se é também o desejo de escapar aos limites do eu, na afirmação de diferir em relação ao outro – aquele a quem nos dirigimos pode não estar onde esperamos encontrá-lo, e não se sabe o que a sua leitura fará com as linhas que esboçamos. Entre o remetente e o destinatário há a desmedida das distâncias, e não é raro que as cartas, desfazendo as restrições do seu destino, passem a vaguear ao acaso pelo tempo e pela geografia. Nessa deriva, as cartas podem ser encontradas por alguém, restar no fundo das gavetas, perder-se antes que qualquer um as tenha lido, desaparecer ou persistir em tantos outros destinos imprevisíveis – o seu caminho passa sempre pela interrupção, pelo intervalo.
Nesse jogo de relações, o decisivo é a dupla indeterminação – apagamento da origem, incerteza do destino – que a escrita de cartas coloca em evidência e que a literatura, herdando essa duplicidade como condição, levará a outros limites.” (pág. 8)