n.26 | 2014 – O jogo do dicionário

Maria Carolina Fenati

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Descrição

Talvez o amor pelas palavras, pela escrita, pela leitura – entre outras experiências de atenção e desprendimento – tornem outra vez sensível aquilo que só por muita distração poderíamos esquecer1. Por um lado, as palavras fascinam pela sua persistência: articulam-se em qualquer boca (mesmo que ninguém saiba ensinar como e por que isso se faz); se elas não existem separadas das vozes que as proferem, o tempo de cada homem passa muito rapidamente diante da sua duração; as palavras, como tudo, podem desaparecer e, como quase nada, podem ressurgir, metamorfoseadas, vindas de um tempo ou de um lugar com os quais já não imaginávamos nos relacionar; seria inexacto afirmar que elas impõem a sua presença, mas a nossa experiência é-lhes inseparável. Por outro, as palavras não deixam de ser frágeis. Parece haver um acordo tácito entre os homens, um acordo que supõe que podemos usá-las e continuar impunes, como se, tornando-as gastas, pudéssemos reduzi- las a instrumentos de um sentido e, subordinando-as, continuar a proferir discursos atraídos pela exigência da eficácia, seduzidos pela promessa de uma comunicação que um dia poderia se tornar imediata ou transparente. nesse caso, as palavras cristalizam-se e correm o risco de desaparecer no seu uso e, se isso promete a agilidade de um discurso instantâneo e pretensamente universal, não é menos verdade que esse mesmo discurso torna substituíveis tanto as palavras como aquele que as profere […]. A persistência da literatura relaciona-se com a força frágil das palavras, é atraída não pela tagarelice que as desfaz no uso utilitário, mas sim pela interrupção que permite ouvir os movimentos silenciosos pelos quais cada palavra é insubstituível. É talvez por isso que, quando os textos nos fascinam, pressentimos que neles as palavras, longe de desaparecer, jogam entre si de modo singular, alegres e moventes, criando relações que os nossos hábitos deixaram de despertar. Todavia, isso não acontece porque as palavras foram enriquecidas, preenchidas até a exaustão por um simbolismo que as engrandece. O movimento parece ser o contrário, e quando uma palavra perde a força ou abertura que a distingue, quando ela torna-se excessivamente pesada, quase imóvel e atrelada à utilidade, é talvez preciso esvaziá-la, mais uma vez estranhá-la até voltar a pensar com ela, a jogar com a sua incerteza e precisão.